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Publicado originalmente no blog Chinese Characteristics em 15 de julho de 2021.
Esta é uma altura em que dias parecem anos, especialmente nas empresas tecnológicas chinesas. Poucos dias após o IPO de 4,4 biliões de dólares da Didi Global no Nasdaq, as suas aplicações foram removidas das lojas online por ordem da Administração de Cibersegurança da China. A razão invocada: violações na recolha de dados pessoais.
Ao invés do capital, sinto que são os reguladores chineses que nunca dormem. Nos últimos nove meses, o IPO do Ant Group foi cancelado, os participantes do Community Group Buying foram multados por dumping de preços, Alibaba foi multada por violações anti monopólio e a Meituan também foi multada por violações anti monopólio. Tal como a Oprah distribui carros, todos os gigantes tecnológicos chineses parecem estar na mira dos reguladores.
Então, por que motivo estão os reguladores a ser mais rigorosos?
Na minha opinião, há uma necessidade global de reequilibrar o poder entre o estado, os players tecnológicos e os consumidores; isto exige uma maior intervenção regulatória. Para a China especificamente, ser um país em desenvolvimento significa que tem mais necessidades regulatórias do que outros.
As plataformas tecnológicas representam desafios significativos para a legitimidade dos Estados-nação. Elas estão a transformar-se em instituições de facto, não apenas no fornecimento de serviços essenciais que são centrais para a vida dos cidadãos, mas também na definição das regras de jogo em que a sociedade opera. O Facebook define a política de moderação de conteúdo para um terço do mundo. O Twitter e outros retiraram a plataforma do ex-presidente dos Estados Unidos, reduzindo-o a uma persona non grata digital. Estas são entidades privadas poderosas que são em parte monopólio e em parte bens públicos, mas o bem-estar do consumidor não é uma parte central da sua agenda. Há uma consciencialização cada vez maior entre os legisladores, razão pela qual os governos em três continentes estão a reavaliar o impacto e o alcance que os gigantes tecnológicos têm sobre os seus cidadãos. O techlash é global.
Por ser um país em desenvolvimento com estruturas institucionais subdesenvolvidas, a China enfrenta algumas questões adicionais na sua abordagem à regulação das tecnológicas. Se utilizássemos os sistemas de regulação dos EUA e da Europa como benchmarks, a China estaria atrasada na formulação e implementação de leis rudimentares. As leis anti monopólio da China foram aprovadas pela primeira vez em 2007, quase um século após o US Sherman Act de 1890, o Clayton Act de 1914 e o Federal Trade Commission Act de 1914. Também é importante notar que a Alibaba foi fundada em 1999, a Tencent em 1998 e Baidu em 2000 - antes das leis anti monopólio. As próprias leis não são suficientes e a Administração Estatal de Regulamentação do Mercado (SAMR) foi criada em abril de 2018 com a responsabilidade de fazer cumprir a legislação.
Ainda há muito trabalho a fazer até que os reguladores chineses atinjam a paridade com as práticas ocidentais estabelecidas. É por isso que os detalhes de cada incidente regulatório são bastante mundanos - seja o dumping de preços da CGB ou “escolha uma plataforma entre duas” da Meituan e Alibaba ou preocupações de segurança nacional em torno de dados confidenciais; estes seriam, na sua maioria, casos de fácil resolução no Ocidente, mas são notícia na China. Em parte, porque não aconteceram antes, o que se deve à falta de vontade política e inexistência do aparato jurídico necessário. Gostaria de salientar que a regulamentação deve ser considerada normal, e não limitada aos players de tecnologia. Kweichow Moutai (maior fabricante de bebidas alcoólicas da China), SF Logistics (transportadora) e empresas de cimento foram já escrutinadas ou multadas. As plataformas de tecnológicas têm efeitos de rede, o que muitas vezes significa maiores retornos marginais, mas também uma maior tendência para criar monopólios. Elas jogam com um conjunto diferente de regras económicas relativamente às empresas físicas.
Mas, e se a China não estivesse a utilizar os EUA e a Europa como benchmarks para a regulação? Como já escrevi anteriormente no artigo “O que quero dizer quando falo sobre as tecnológicas chinesas”:
“Um tema importante que permeia a tecnologia chinesa é que, sendo a China um país em desenvolvimento com instituições subdesenvolvidas, a tecnologia não está a ampliar as instituições existentes, mas sim a criá-las.”
Existe uma relação simbiótica entre as antigas instituições públicas e as novas instituições digitais em ascensão na China. Didi “limpou” o mercado dos táxis, Meituan e Ele.ma agem como inspetores de higiene nos restaurantes. Cada uma das plataformas de conteúdo leva a cabo moderação de conteúdo em nome do partido. O governo é pragmático. Na estrutura de governança autoritária fragmentada da China, os agentes que conseguem introduzir e manter a legibilidade permanecem.
Com estas estruturas híbridas de governança a crescer a ritmo aceleradíssimo, não é óbvio o que deve ser regulamentado e como. Apesar da ausência de linhas mestras, existe uma cadência reguladora a que dou o nome: “deixem as balas voar”.
Para compreender totalmente a China, é essencial ver o filme chamado Let the Bullets Fly. Desde o seu lançamento em 2010, a história de um ladrão que se tornou falso governador na cidade feudal de Goosetown tornou-se um meme do ciberespaço chinês. Repleto de coisas ditas e não ditas sobre as regras e os limites de poder, dinheiro e legalidade na China, Let the Bullets Fly é uma pedra de toque cultural.
Em cenas cruciais - batalhas desconcertantes em que nada é claro - os subordinados perguntam ao governador-ladrão o que fazer. Inevitavelmente, ele responde com a famosa frase "Deixem as balas voar". Ou seja, deixem correr o caos; quem sabe que problemas se resolvem sem intervenção ou quando a maré vai virar. A inação é um ativo durante a incerteza. Intervir nas coisas muito cedo restringe as possibilidades.
Deixando de lado a minha paixão amor pelos memes chineses, esta frase tem uma ressonância especial entre reguladores e economistas. É um bordão muito utilizado nas conversas quando lhes pedem para descrever a abordagem regulatória chinesa. Isto também é confirmado pela teoria macroeconómica: quando os mercados experimentam uma incerteza futura elevada (como é o caso em mercados emergentes) e os reguladores dispõem de ferramentas regulatórias inadequadas, o viés para a inação é uma estratégia dominante.
O lema de Deng (Xiaoping) – “cruzar o rio sentindo as pedras" captura o pragmatismo subtil necessário para navegar novos mundos admiráveis. Em parte, devido a informações imperfeitas e em parte devido à ausência de consenso sobre que abordagens regulatórias adotarem, os reguladores chineses têm historicamente adotado uma abordagem de observar e depois agir.
Há um equilíbrio delicado entre permitir que o crescimento e a inovação tomem forma e, simultaneamente, salvaguardar os interesses da sociedade e dos consumidores. Os reguladores nem sempre acertam; durante as guerras de preços das telecomunicações móveis no início dos anos 2000, os reguladores foram muito brandos. Durante os empréstimos P2P em 2015, eles agiram tarde demais. Durante a era da economia partilhada, as pessoas perderam os seus depósitos no Ofo, antes que a regulação fosse implementada. A cada episódio, os reguladores aprendem com a experiência anterior, aumentam as suas capacidades de supervisão e melhoram no próximo evento. O padrão repete-se: uma vaga de inovação precede a regulamentação, sendo o ponto de inflexão o degradar do bem-estar do consumidor. O resultado é que as empresas saem vivas, mas mudadas - a Lufax, um dos mais importantes credores P2P, também cancelou os seus planos para um IPO em 2018 devido a questões regulatórias. Eles adaptaram-se com sucesso como um credor corporativo e cotaram no Nasdaq em novembro de 2020. O Ant Group está a ser reestruturado, mas tem autorização para continuar.
Na minha opinião, a verdadeira questão aqui não é por que razão estão as empresas tecnológicas a enfrentar regulação – a história da tecnologia chinesa mostra que isto aconteceu sempre. A questão deveria ser: porquê agora? Posso apontar algumas razões:
Estou otimista no longo prazo, mas cautelosa no curto prazo. A intenção da regulação não é eliminar a inovação, mas redesenhar os limites em que as empresas privadas podem operar para maximizar os seus lucros. Para que serve uma empresa morta? Especialmente quando se está a lidar com algo tão crucial como os serviços públicos modernos. Dito isto, há um longo lista de espera de regulações a serem cumpridas. As empresas tecnológicas chinesas precisam de lidar com as suas dívidas de tecnologia e práticas de cobrança, agora que sabem que o CAC e o SAMR estão, de fato, atentas. As balas deixaram de voar e a ação começou.