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Ben Thompson escreve sobre a Disney e o futuro da Televisão. Partilhamos abaixo a tradução integral deste artigo extraordinário.

DISNEY E O FUTURO DA TV

15 de abril de 2019

Ontem assistimos a uma verdadeiramente extraordinária transmissão televisiva: Tiger Woods coroou uma incrível recuperação de tumulto pessoal (autoinfligido) e lesão física com a sua primeira vitória num torneio de topo em 12 anos no Masters.

https://twitter.com/TheMasters/status/1117496728981245952

O momento foi incrível em si mesmo; os comentadores da CBS escolheram manter-se em silêncio durante dois minutos e quarenta segundos e deixaram que as imagens e sons do 18º green do Augusta National contassem a história. Isto é revelador, não apenas do discernimento dos comentadores, mas também do drama sem paralelo que torna a televisão no meio de comunicação mais valioso que existe.

Algumas horas mais tarde, a estreia da temporada final de Game of Thrones trouxe drama de um tipo diferente: programado e caro. Prevê-se que o episódio atraia 14 milhões de telespectadores (e muitos milhões mais em streams piratas) e é já um fenómeno cultural.

O maior drama em todo o mundo da televisão foi, no entanto, à superfície bastante banal: na quinta feira passada, a Disney transmitiu, via webcast, o seu Dia do Investidor 2019, onde revelou pormenores, não apenas do seu futuro serviço de streaming Disney+, mas também do futuro da televisão em geral. E, tal como em qualquer grande drama, o que está a acontecer é, não só uma história empolgante, mas é também uma lente através da qual podemos compreender muito mais do que o assunto em mãos.

Uma Breve História da Televisão

Em 2013, argumentei que a televisão desempenhava vários papeis / trabalhos para as pessoas: informa, educa, fornece uma visão em direto a desportos e outros eventos, conta histórias e oferece um escape, ao tédio pelo menos.

Todos estes papeis tem o mesmo modelo de negócio: publicidade. Os consumidores ligam a televisão para ver a programação e a publicidade nativa – isto é publicidade no mesmo formato que o conteúdo que acompanham – é intercalada. Tudo está alinhado: os consumidores gostam de televisão, recebem-na gratuitamente e os anunciantes querem chegar ao maior número de pessoas possível com o mais persuasivo dos meios.

Este quadro começou a mudar nos anos 70: comunidades espalhadas pelos Estados Unidos, particularmente aquelas cuja geografia dificultava a receção de um sinal de televisão fiável, uniam-se, há vários anos, para construir antenas gigantes que capturassem o sinal de transmissão que depois era transmitido para as suas casas através de um cabo. Esses cabos, descobriu-se, tinham mais largura de banda e, ainda mais importante, não era exigida qualquer licença. Começaram então a proliferar televisões de acesso comunitário (televisão cujo acesso era exclusivo da comunidade que estava ligada à rede da antena comunitária) e, mais tarde, canais exclusivos de cabo que alavancavam a transmissão via satélite para chegar às redes de cabo dessas comunidades.

Surgiu então, com esta nova tecnologia e um novo meio de distribuição, um novo modelo de negócio: affiliate fees. As empresas de cabo não se limitavam a receber dinheiro dos clientes para acesso aos canais suportados por publicidade; recebiam dinheiro também em nome dos próprios canais de cabo. Esta revolução foi liderada pela ESPN, que introduziu o conceito de affiliate fees em 1982, alargou-a a todos os Estados Unidos em 1987 com o programa desportivo Sunday Night Football e inspirou inúmeros imitadores e, pelo caminho, revolucionou a indústria da televisão. Tal como expliquei em 2015 no artigo The Changing – and Unchanging – Structure of TV:

“Nos anos seguintes, as empresas de conteúdos compreenderam que a razão pela qual os consumidores pagavam às empresas de cabo era porque queriam acesso aos conteúdos dos criadores (tal como o negócio acima da NFL); isso significava que as empresas de conteúdos podiam obrigar as empresas de cabo a pagar affiliate fees cada vez maiores por esse conteúdo. Melhor ainda, se múltiplos canais se unissem, os conglomerados resultantes – Viacom, NBCUniversal, Disney, etc – poderiam obrigar as empresas de cabo a pagar affiliate fees por todos os seus canais, quer fossem populares ou não. E, melhor que tudo, eram as empresas de cabo que se viam forçadas a enfrentar a fúria dos consumidores que viram a sua conta de cabo (apenas televisão) subir de cerca de 22 dólares mensais em 1995 para 54 dólares em 2010.”

É difícil exagerar o quão lucrativo era este modelo para todos os envolvidos: as empresas de conteúdos tinham uma receita garantida e um “manípulo” para aumentar lucros que aparentava poder ser acionado vezes sem fim; as empresas de cabo gozavam de monopólios naturais que aumentaram com os serviços de internet de banda larga; e, embora os consumidores se queixassem da conta do cabo, a verdade é que os pacotes conjuntos são um excelente negócio.

Acabei de mencionar, porém, o elefante na sala: internet de banda larga.

O Impacto da Internet

Não demorou muito tempo até que a internet e o seu custo marginal de distribuição zero tomassem o lugar de alguns dos papeis/trabalhos da televisão: informação e conteúdo educativo, por exemplo, são ideias para um meio de comunicação que não tem qualquer constrangimento em termos de tempo linear ou um número finito de canais. Podemos agora procurar informação acerca de tudo o que desejarmos e a ascensão do YouTube disponibilizou essa informação em formato vídeo.

Na última década, Netflix, em particular, perseguiu agressivamente o papel de contador de histórias e de escape do tédio que a televisão desempenhava: por uma modesta (relativamente ao cabo) taxa mensal, a Netflix oferece todo o conteúdo a que conseguiu pôr as mãos, licenciado a canais de televisão tradicionais ou conteúdo exclusivo criado diretamente pelos respetivos autores.

Em ambos os casos – Netflix e YouTube – a experiência e o modelo de negócio são superiores à televisão tradicional.

  • YouTube é baseado em publicidade, o que, à primeira vista, é similar à televisão, mas estes anúncios podem ser aplicados a todo e qualquer conteúdo algoritmicamente; isto está alinhado com um serviço que aceita todo o tipo de conteúdo, do mais popular ao nicho mais incrível, e que tem início numa busca, não num guia de programação.
  • Netflix, por seu lado, é baseado em subscrições, o que é similar à televisão por cabo, mas sem intermediários e publicidade. Isto resulta numa melhor experiência para os consumidores que podem ver o que querem, quando querem, sem qualquer tipo de incómodo.

Este alinhamento é crítico. De uma perspetiva de negócio, a característica mais marcante da internet é talvez a remoção do meio de distribuição como ponto primário de diferenciação na cadeia de valor, e a televisão é o exemplo perfeito. O que mais importava no passado eram, primeiro, as licenças para transmissão do sinal televisivo, depois o cabo, e todo o resto do negócio fluía daqui – é por isto que todos os “papeis” da televisão tinham o mesmo modelo de negócio.

 Na internet, pelo contrário, todos podem chegar a todos com qualquer coisa. Isto aumenta dramaticamente a concorrência pela atenção dos consumidores e, para ganhar essa atenção, é essencial desenvolver um modelo de negócios alinhado com o papel que deve ser desempenhado. E, uma vez que existem muitos papeis, existem também muitos modelos de negócio.

ESPN+ e a Televisão Tradicional

Não olhemos mais além que o evento de investidores da Disney: embora a maior parte do tempo e subsequente atenção foi dada à nova oferta de streaming Disney+, a empresa discutiu também a ESPN+ e Hulu. À primeira vista, pode parecer estranho que a Disney tenha três serviços distintos de streaming; por que não concentrar todas as forças numa única oferta?

Na realidade, acabei de explicar porquê: num mundo em que a distribuição importava mais que tudo o resto, fazia sentido que a Disney concentrasse todos os seus ativos de televisão; isso garantia o máximo poder de negociação com as empresas de cabo. Na internet, no entanto, é melhor começar com os “papeis”.

Consideremos a ESPN: o principal papel do conglomerado de desportos é a transmissão em direto de eventos desportivos e a verdade é que a televisão tradicional é o meio perfeito para este fim:

  • Os eventos desportivos, em termos televisivos, são altamente diferenciados, o que significa que as pessoas pagam mais para lhes ter acesso; é por isto que a ESPN foi capaz de criar o modelo de affiliate fees e consegue cobrar os preços mais altos, por larga margem, da indústria.
  • Os eventos desportivos são melhor “consumidos” ao vivo, o que significa que a distribuição via televisão tradicional (satélite ou cabo) é preferível ao streaming. Isto deve-se em parte a aspetos como a fiabilidade, mas também é o resultado de serviços como o Twitter; em virtude da minha localização geográfica, consumo a maior parte dos meus desportos através de streaming e ver no Twitter que a minha equipa marcou um golo antes de o ver no ecrã da televisão é incrivelmente frustrante.
  • Os eventos desportivos têm pausas naturais que são perfeitas para a publicidade – e uma vez que são transmitidos em directo, a opção de “saltar” os anúncios não existe.

É por tudo isto que estou convicto que o pacote de cabo tradicional se tornará lentamente o pacote de desportos; a isto adicionaria as notícias. Esta é a aposta que Rupert Murdoch fez com a Fox; a Disney não comprou a empresa inteira; Murdoch manteve a Fox Broadcasting Company, Fox Television Stations e Fox Sports Media Group. O que estes ativos têm em comum é que estão perfeitamente alinhados com o modelo de televisão tradicional: as notícias e os desportos são melhores em direto e impulsiona a publicidade e os affiliate fees.

 É aqui – com este objetivo – que entra a ESPN+. Uma das iniciativas mais inteligentes da Disney na última década foi a compra por atacado de direitos desportivos. Os direitos são a commodity mais valiosa deste modelo de negócio e a ESPN tentou comprar tudo (em parte para impedir que a FOX em particular invadisse o seu domínio). Ao mesmo tempo, apesar de todos os benefícios do modelo de televisão tradicional, existe ainda o constrangimento fundamental do tempo: a ESPN só tem um número limitado de canais e um número limitado de horários onde transmitir jogos, o que significa que tem direitos de muito mais jogos do que aqueles que pode exibir nas suas redes tradicionais.

Entra a ESPN+: este serviço não é um novo modelo de negócio; é simplesmente uma oportunidade de amealhar receitas incrementais nos ativos (direitos desportivos) em que a ESPN já investiu. Obviamente que a ESPN irá adquirir mais direitos para o serviço e produzir programação original, mas não tenham ilusões: a televisão tradicional é e continuará a ser o modelo de negócio central por muitos e bons anos.

Disney+ e o Universo Disney

A melhor forma de compreender a Disney+ começa com o nome: este é um serviço que não tem, na realidade, a ver com a televisão, pelo menos não diretamente, mas sim com a própria Disney. Este famoso gráfico criado pelo próprio Walt Disney continua atual:

Postei este gráfico no Stratechery quando a Disney anunciou em 2017 que iria lançar um serviço de streaming. Escrevi na altura:

No centro, obviamente, estão os Disney Studios, e com justiça. O conteúdo diferenciado impulsiona, não apenas as receitas de bilheteira, mas cria também os universos e personagens que garantem receitas em licenças para televisão, música e merchandising.

O que sempre fez a Disney única, no entanto, é a Disneyland: lá o conteúdo diferenciado toma vida  e, dada a ausência de uma seta, suspeito que nem o próprio Walt Disney suspeitava da magnitude da capacidade dos parques de diversão, e da ligação que geram com os consumidores, de impulsionar o resto do negócio. “Disney” é uma marca, tal como Mickey Mouse ou Buzz Lightyear, com lojas, um canal de cabo e um motivo para ver um filme, mesmo que não saibamos nada sobre ele.

 

Este é o único contexto adequado em que devemos pensar sobre a Disney+. Embora, obviamente, a Disney+ vá competir com a Netflix pela atenção dos consumidores, os objetivos dos dois serviços são muito diferentes: para a netflix, o streaming é o seu único negócio, o único motor de receitas e lucros. A Disney, por seu lado, planeia, como é óbvio, ter lucro com a Disney+ - a empresa prevê que o serviço será lucrativo em 2024 e isso inclui pagamentos aos Disney Studios – mas o projeto maior é a própria Disney.

Ao controlar a distribuição do seu conteúdo diretamente ao consumidor, a Disney consegue aprofundar a já forte relação com os clientes de uma forma que beneficiará todas as componentes do negócio: os filmes geram conteúdo original na Disney+ que geram novas atrações nos parques que geram oportunidades de merchandising que geram novos filmes. Estes componentes interagem e evoluem uns sobre os outros como um universo cinemático na vida real. Na realidade, o facto de a Disney ter demorado tanto tempo a transitar para esta abordagem atesta o quão lucrativo é o modelo da televisão tradicional. A Disney+ encaixa-se muito melhor no negócio da Disney no longo prazo do que simplesmente espalhar o conteúdo por quem paga mais.

É também por este motivo que a Disney está confortável em ser tão agressiva no preço: a empresa podia facilmente cobrar 9,99 dólares por mês ou até os 13,99 dólares por mês que a Netflix cobra – o caminho para os lucros para a Disney+ seria com certeza mais curto. O desfecho para a Disney como um todo seria, no entanto, pior: um preço mais elevado significa menos clientes e, dada a miríade de formas que a Disney tem de monetizar clientes ao longo das suas vidas, essa seria uma má troca.

A Hulu Como Hedge

Esta é outra razão pela qual a Disney+ não compete diretamente com a Netflix (exceto, obviamente, pelo fato de os consumidores terem apenas 24 horas por dia). Na app da Disney+ existem botões dedicados a Disney, Pixar, Marvel, Star Wars e National Geographic:

Existe outro conteúdo na app, incluindo os Simpsons e um conjunto de filmes familiares da Disney Studios que não encaixam nas categorias acima, mas este não é um serviço focado na aquisição de conteúdo, como a Netflix. Este serviço é uma peça na máquina gigantesca que é a Disney.

Cabe à Hulu ser a concorrente da Netflix ou, mais exatamente, a hedge contra a Netflix. Enquanto a Hulu estiver presente, a Netflix não será a única alternativa à venda de direitos de streaming ou conteúdo original independente. A Disney, obviamente, produz também este tipo de conteúdo (particularmente após a aquisição da 21st Century Fox) e beneficia da existência de mais compradores (mesmo que um dos compradores seja a própria Disney). Hulu vende também o pacote tradicional de cabo através do streaming, algo que a Disney continua interessada em apoiar.

Será também interessante observar que tipo de pacote – que inclui Disney+, Hulu e ESPN+ - oferecerá a Disney; graças ao Hulu Live, esse pacote poderá incluir basicamente todos os tipos de conteúdo exceto o que está na Netflix (e Amazon Video e Apple+) o que tornaria a Disney não apenas a Disney do pacote tradicional de televisão, mas também a Comcast.

O Futuro da Televisão

Eis então o que, eu acredito ser o futuro da televisão:

A Netflix é um agregador que alavanca a sua maciça base de subscritores para comprar os programas que quer de fornecedores cada vez mais enfraquecidos que não conseguem libertar-se das suas fontes de receita tradicionais, ainda que estejam a diminuir (graças à Netflix). O objetivo da Netflix é ter todos os tipos de programa para todos os tipos de pessoas a quem cobra uma taxa mensal que lenta mas seguramente continuará a aumentar. Por outras palavras, a melhor forma de encarar a Netflix é, não como um canal, mas sim como uma nova empresa de cabo, embora uma focada apenas em conteúdo persistente (não em direto).

A Disney é, bem, a Disney e segue uma estratégia que é tão única como a própria empresa. Disney+ será um serviço popular, mas o objetivo não é construir um agregador como a Netflix, mas sim algo que reforce e expanda a máquina Disney. Hulu, por seu lado, manter-se-á como um concorrente da Netflix e como guardião, em geral, dos conteúdos sem marca da Disney.

A televisão tradicional será dominada pelos desportos e notícias, com a ESPN, Fox e Turner a dominarem o mercado. Todos estão na posse de ativos muito fortes no desporto e informação e continuarão dependentes (e porque não?) do mix tradicional de publicidade e affiliate fees.

A longa cauda do conteúdo, incluindo a maior parte da informação e educação, continuará a ser dominada pelo YouTube e o seu modelo baseado em publicidade.

Restam os especialistas e revendedores que terão uma relação simbiótica:

  • Os especialistas incluem empresas diretas ao consumidor tais como HBO e Showtime, assim como as várias tentativas dos canais tradicionais no mercado direto ao consumidor. Suspeito que a maioria terá muitas dificuldades em atingir a escala necessária que justifique o tipo de investimento a que a Disney se comprometeu. A sua abordagem inclui televisão tradicional, vendas à Netflix e Hulu e serviços isolados de streaming.
  • Os especialistas ajudam os especialistas a chegar aos olhos dos consumidores e facilitam a transação, cobrando uma comissã Este foi sempre o modelo da HBO e da Showtime, mas agora, em vez das empresas de cabo estarem no meio, estão a Amazon Prime, Roku e, mais tarde, a Apple TV. Penso também que esta é a melhor forma de compreender as ambições relativas ao conteúdo original da Apple e Amazon; o objetivo não é competir com a Netflix, mas sim tornar as suas “montras” locais agradáveis onde os consumidores vão subscrever outros serviços.

Em jeito de conclusão, cada uma das cinco categorias desempenha um “papel” diferente e tem um modelo de negócio diferente; se “a característica mais marcante da internet de uma perspetiva de negócio é a remoção do meio de distribuição como o ponto primário de diferenciação na cadeia de valor”, é lógico concluir que a parte mais importante do sucesso na internet é a construção de um modelo de negócio que se alinhe com o papel a desempenhar e não o contrário.


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