Autoria
Barry Ritholtz
Barry Ritholtz

Incerteza “sem precedentes”

Demasiada incerteza? O mundo sempre foi assim.

O que mudou é que muitas das ilusões que utilizamos para lidar com a situação foram desmanteladas.

Os eufemismos permitem-nos evitar o confronto com a verdade nua e crua. A sua ambiguidade faz com que o terrível pareça meramente mau e torna o mau parecer quase OK. É uma suavização da realidade subjetiva, o que nos permite viver alegremente numa negação ilusória. Esta não é uma boa estratégia para relações pessoais, para a carreira e, principalmente, para os investidores.

Repare que já não temos mais colisões rodoviárias que matam mais de 40.000 americanos por ano. Ao invés, temos “acidentes” causados ​​por motoristas desatentos, imprudentes ou - para usar um eufemismo - debilitados. As empresas já não demitem milhares de empregados de uma penada, aumentando a taxa de desemprego; agora as empresas diminuem a força de trabalho ou, pior ainda, ajustam-na. Até a palavra eufemismo é ela própria um eufemismo. É uma mentira concebida para que consigamos esconder de nós próprios uma verdade horrível.

Durante os anos 70, “banana” foi um eufemismo económico muito famoso. Alfred Kahn, então presidente do Conselho de Estabilidade de Salários e Preços, recebeu instruções para nunca utilizar a palavra “depressão” ou mesmo “recessão” quando falasse na Casa Branca ou em público. Portanto, para alertar sobre problemas económicos potenciais, ele debatia "a pior “banana” alguma vez vista".

No final de contas, recusar-se a usar a palavra "recessão" foi uma má estratégia política para o chefe de Kahn, o presidente Jimmy Carter. Ele perdeu as eleições por uma margem esmagadora. Ou talvez seja menos desagradável dizer que Carter “ficou em segundo lugar” devido a um “kumquat”.[1]

Os eufemismos não nos ajudam a tomar melhores decisões ou a enfrentar os desafios frontalmente. Tal como relatado pela Bloomberg News e pelo New York Times, a utilização cada vez mais frequente da expressão “sem precedentes” durante as conferências de publicação de resultados trimestrais serve como um lembrete. Todos nós compreendemos o impacto das ordens de confinamento, com o produto interno bruto do segundo trimestre a cair 50%. Mas, eis a questão: os investidores não estão à espera que a administração das empresas seja clarividente, mas esperam que essas administrações tenham planos para a eventualidade de um desastre e que executem esse plano quando necessário. Isto leva-nos a três perguntas básicas que os investidores devem colocar às administrações das empresas:

  • O que fizeram para se prepararem para este tipo de evento?
  • Como estão a lidar com a crise?
  • Quais são os planos para o futuro pós-pandemia?

Algumas empresas estão muito melhor posicionadas, tendo em conta o seu modelo de negócio, do que outras. A Netflix Inc. é uma vencedora natural numa era de confinamento doméstico. Mas a gigante do entretenimento Walt Disney Co., com seus parques temáticos e filmes, foi duramente atingida pela pandemia. Teve, no entanto, a clarividência de se expandir para além desses negócios “ao vivo”, com novas ofertas como o serviço de streaming Disney +, que conta já com mais de 55 milhões de subscritores. Estes eventos sem precedentes não a impediram de planear a sua estratégia para o entretenimento doméstico e de a executar. Outras empresas de entretenimento ao vivo, como Live Nation Entertainment Inc., Madison Square Garden Entertainment Corp. ou Six Flags Entertainment Corp., não foram tão prescientes.

Vejamos as empresas de retalho, como a Amazon.com Inc., Target Corp. e Walmart Inc. – todas fizeram um excelente trabalho na execução da chamada estratégia do último kilómetro. Outros retalhistas que vendem produtos essenciais para os mesmos clientes não o fizeram. Os investidores julgam estas administrações, em parte, pela forma como respondem a uma crise como o Covid-19. Este evento em particular nunca aconteceu antes, mas, ainda assim, os acionistas querem saber como os gestores planeiam lidar com ele.

Esta ênfase exagerada no "sem precedentes" merece uma atenção especial porque, na realidade, é muito banal. Eventos novos e inéditos ocorrem com surpreendente regularidade. O estado normal dos negócios humanos tem sido de mudança persistente e sem precedentes. Não são apenas os riscos para a saúde globais do momento; isto é verdade em todas as esferas da atividade humana. A configuração padrão da humanidade é criar novas ideias, inovações, conceitos, modelos de negócios, tecnologias e soluções.

Mesmo nas melhores circunstâncias, temos uma visibilidade limitada – outro eufemismo – sobre quase tudo. Consideremos as receitas e os lucros das empresas. Quantas vezes as empresas atualizam, alteram e revêm a "orientação" dos lucros trimestrais - mais um eufemismo, este para "previsão". Sim, estas previsões tornam-se mais precisas à medida que o final do trimestre se aproxima, mas apenas porque se acumularam mais dados concretos. No final, tudo se resume a meros palpites informados.

Estes podem ser tempos sem precedentes, mas não são, na realidade, incomuns. A incerteza impera sempre e ninguém sabe o que o futuro nos reserva. Por isso, ninguém sabe concretamente, ou tem até noção de quando a economia vai recuperar, quantos pessoas vão morrer e quando vai acabar a pandemia. Fingir o contrário com eufemismos não torna o futuro menos incerto.

Lembremo-nos apenas que existe hoje exatamente o mesmo grau de incerteza sobre o futuro que sempre existiu. Em tempos de crise, simplesmente perdemos a capacidade de nos enganarmos a nós próprios a esse respeito.

[1] Quando a United Fruit Co., um dos maiores produtores de bananas dos Estados Unidos, produtor de banana, protestou a utilização da palavra "banana", Kahn mudou a sua escolha de eufemismo para "kumquat". Isto é mesmo verdade.


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