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Autoria
Mark Lilla
Mark Lilla

Artigo da autoria de Mark Lilla, publicado originalmente no New York Times de 22 de maio de 2020.

Ninguém sabe o que vai acontecer

Pare de pedir aos especialistas para preverem o futuro após o coronavírus. Ele não existe.

 

O melhor profeta, escreveu Thomas Hobbes, é o melhor adivinho. Esta parece ser a palavra final quanto à nossa capacidade de prever o futuro: Não conseguimos.

Esta, no entanto, é uma verdade que nós, humanos, nunca fomos capazes de aceitar. As pessoas que enfrentam um perigo imediato querem ouvir uma voz autoritária da qual possam extrair garantias; querem saber o que acontecerá, como se devem preparar e que tudo ficará bem. Aparentemente, não fomos feitos para viver na incerteza. Rousseau não exagerou quando escreveu que, quando as coisas são realmente importantes, preferimos estar errados do que não acreditar em nada.

A história da humanidade é a história da impaciência. Não queremos apenas o conhecimento do futuro, queremo-lo quando o quisermos. O Livro de Job condena o orgulho desse desejo de atenção imediata. Deus deixa claro que não é uma máquina de vendas automáticas. Ele mostra a sua face e revela os seus planos na altura certa, não quando nos apetece a nós, humanos. Devemos aprender a esperar no Senhor, ensina-nos a Bíblia. Boa sorte com isso, resmunga Job.

Quando os deuses estão silenciosos, os seres humanos metem mãos à obra. Nas religiões em que se acreditava que o divino gravava as suas mensagens no mundo natural, os especialistas procuravam auspícios na disposição das estrelas no céu, em baralhos de cartas, dados, pilhas de paus, uma chama de vela, uma taça de água oleosa ou o fígado de umas pobres ovelhas. Com estes materiais, as batalhas poderiam ser planeadas, as pragas previstas e os maus casamentos evitados.

 

Nos locais onde se acreditava que os deuses comunicavam verbalmente com os seres humanos, eram designados oráculos e profetas para dar respostas a quem as solicitasse. Os oráculos mais respeitados no mundo grego antigo eram as altas sacerdotisas do templo de Apolo em Delfos. Quando chegava o momento de responder a um peticionário que colocara uma questão diante de si, a sacerdotisa entrava no santuário interior e sentava-se num tripé erguido sobre uma fenda no chão, da qual, pensa-se, se elevavam gases inebriantes.

Esses vapores paralisavam as suas faculdades racionais e colocavam-na num transe de recetividade que permitia ao deus Apolo falar através dela em observações crípticas e enigmas. Estes seriam interpretados por uma segunda figura, o profeta, que respondia ao agradecido peticionário em poesia ou prosa. Era uma startup muito bem-sucedida e fez de Delphi uma cidade rica.

Os profetas de hoje são menos extravagantes. Os antigos primeiros-ministros não costumam cheirar drogas antes de aparecer na CNN. Sentam-se docilmente na sala verde, bebendo água mineral antes de serem chamados para anunciar o nosso destino. Os augúrios desistiram dos fígados de ovinos e substituíram-nos por big data e modelos estatísticos. A maravilha é que continuamos a gritamos pela sua ajuda, uma vez que o futuro está repleto de surpresas.

Os analistas profissionais sabem isto acerca do futuro e é por isso que, em letras pequenas nos seus relatórios, listam todas as premissas incluídas na previsão e o grau de confiança estatística que se pode ter em determinadas estimativas, de acordo com os dados e os métodos de pesquisa utilizados. No entanto, os jornalistas apressados e os funcionários públicos não compreendem ou não leem as notas de rodapé e, com o público à espera de informações, eles, compreensivelmente, retransmitem as estimativas mais marcantes, só para passar o dia.

Os antigos augúrios e profetas eram profissões de alto risco. Quando as suas previsões não se concretizavam, muitos foram executados por soberanos ou linchados por multidões. Assistimos, hoje, a uma versão sem sangue dessa reação no declínio da confiança do público nos media e no governo.

Eis um exemplo banal: tempestades de neve e encerramento de escolas. Há meio século atrás, quando as previsões meteorológicas eram bem menos sofisticadas, pais e filhos não sabiam que as aulas seriam canceladas até que a tempestade começasse e o encerramento fosse anunciado na rádio e na televisão naquela mesma manhã. Vivíamos numa incerteza inofensiva que, para as crianças, era emocionante. Quando os flocos de neve caíam, pareciam maná caído do céu.

Hoje, presidentes de câmara e diretores de escolas, confiando nos meteorologistas, anunciam rotineiramente encerramentos com um ou mais dias de antecedência. Se a tempestade não chega, são severamente criticados pelos pais que perderam um dia de trabalho ou tiveram que procurar quem tomasse conta dos filhos. E se uma tempestade imprevista paralisa a cidade, deixando ruas sem sal e crianças presas na escola, a reação é muito pior. Mais do que um presidente de câmara já perdeu a reeleição devido a previsões falhadas, vítima do nosso coletivo excesso de confiança na previsão humana.

O nosso vício nas previsões económicas é muito mais consequente. Aqui, as notas de rodapé são mesmo importantes, mas os políticos e a imprensa encorajam o pensamento mágico.

O candidato declara: “O meu programa criará 205 000 novos empregos, fará subir o Dow em 317 pontos e diminuirá o preço da gasolina em 15 cêntimos. Passados dois anos, as manchetes proclamam: As Promessas Falhadas do Presidente. Crescimento estagnado, mercados em baixa e guerra no Médio Oriente tornam a reeleição improvável.

Não importa se o declínio na procura global abrandou o crescimento, se Wall Street é uma rainha do drama e se uma colisão acidental de petroleiros desencadeou a guerra. Declara-se convictamente uma presidência fracassada. E assim a imprensa e o público procuram rostos novos - que, obviamente, oferecem as mesmas previsões absurdamente precisas. Não admira que Gore Vidal nos tenha batizado os Estados Unidos da Amnésia.

 

Hoje, a praça pública está repleta de augúrios e profetas que prometem prever o futuro mundo pós-covid. Eu próprio, que me surpreendo com o pôr do sol todas as noites, fui assediado por jornalistas estrangeiros que me perguntam o que a pandemia significará para a eleição presidencial americana, para o populismo, as perspetivas do socialismo, relações raciais, crescimento económico, ensino superior, a cena política de Nova York e muito mais. E eles aparentam ficar terrivelmente irritados quando declaro não fazer qualquer ideia. Sabes as deixas, declama-as simplesmente.

Eu entendo a sua posição. Com a vida cotidiana congelada, há menos eventos interessantes a serem noticiados e debatidos. No entanto, é preciso escrever colunas de opinião e alimentar a máquina de notícias a cabo 24 horas por dia e sete dias por semana. Há um limite de tempo que pode ser aplicado nas conferências de imprensa diárias (de arrepiar cabelo) ou na atribuição de culpas nas decisões tomadas no passado ou nas histórias sentimentais de como as pessoas estão a lidar com a pandemia. Por tudo isto, a atenção dos jornalistas volta-se para o futuro.

Mas o futuro pós-covid não existe. Existirá apenas depois de o termos feito. As profecias religiosas são racionais, se acreditarmos que o futuro está nas mãos dos deuses e não nas nossas. Os crentes acreditam que aquilo que os deuses proclamam através da boca dos oráculos ou escrevem nos intestinos dos animais sacrificados se tornará realidade, independentemente das suas ações. Mas se não acreditamos em tais divindades, não temos motivos para perguntar o que acontecerá connosco. Devemos perguntar apenas o que queremos que aconteça e como fazer com que aconteça, dadas as condicionantes do momento.

Para além da biologia real do coronavírus - que estamos apenas a começar a compreender - nada é predestinado. O número de pessoas que contraem a doença depende de como se comportam, como são testadas, como são tratadas e se temos sorte no desenvolvimento de uma vacina.

O resultado destas decisões limitará então as opções de reabertura que empregadores, autarcas, reitores de universidades e donos de clubes desportivos enfrentam. As suas decisões influenciarão de seguida as nossas próprias decisões, incluindo quem escolhemos para presidente em novembro. E os resultados dessa eleição terão o maior impacto sobre o que nos reservam os próximos quatro anos.

A pandemia vei apenas relembrar e reforçar quão enorme é a nossa responsabilidade para com o futuro e também quão inadequados são os nossos conhecimentos para tomar decisões sábias e antecipar as respetivas consequências. Talvez por isso os nossos profetas e augúrios não conseguem acompanhar a procura por previsões.

De certa forma, as pessoas acreditam que quanto mais sabem acerca do que é predeterminado, mais controlo têm. Isto é uma ilusão. Os seres humanos querem sentir que caminham decididamente para o futuro, quando, na verdade, estão, no nevoeiro, a bater no passeio com a bengala.

Faz-nos falta, no momento presente, uma dose de humildade. Isto poderá também ajudar-nos a aceitar a incerteza radical em que sempre vivemos. Reformemos os nossos profetas e augúrios. E deixemos de pedir a especialistas em saúde e funcionários públicos projeções confiantes que eles não estão em posição de fazer – e deixemos de ficar desapontados quando essas projeções que os obrigamos a fazer estiverem erradas. (Alterar as conferências de imprensa de diárias para semanais seria um pequeno passo em direção à sobriedade.)

Já é suficientemente mau viver com um presidente que se recusa a reconhecer a realidade. Pioramos a situação, se nos concentrarmos em litigar o passado e exigir certezas sobre o futuro. Devemos aceitar aquilo a que estamos, de qualquer forma, condenados a fazer na vida: toque e passo, toque e passo, toque e passo…


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